sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nemrud

Nemrud, face do por do sol
Depois de um khavalti maravilhoso, no hotel Kirçuval, arrumamos as malas para ir para Nemrud Dağ, a algumas horas de distância. Saímos às 11h, almoçamos no caminho, seguimos viagem pela estrada cheia de curvas, mirando uma paisagem fértil, nos vales e árida, nos picos, subindo sempre. Passamos por tributários do Eufrates, vimos o quanto estava seco o outono, mas ainda assim, a paisagem era linda, com brisas penteando os álamos, que estavam começando a amarelar e perder as folhas. Riachos cristalinos cascateando entre as lavouras, o campo sem cercas, a lenha cortada, tudo pronto para esperar o tempo frio, que já se anunciava.
Na região da Malatya, cerca de 50% da população é curda ou de descendência curda. As músicas são diferentes e a língua é tão distinta, que mesmo não entendendo nenhuma das duas, sabemos que não é turco, o que falavam.
Tributário do Eufrates, com seu leito pedregoso exposto, quase seco
Chegamos ao hotel, lá pelas 3 da tarde, não porque fosse muito longe, mas a estrada sobe, cheia de curvas, e paramos algumas vezes, no caminho. O motorista pisava...
A paisagem foi mudando, de verde e fértil, para seca e rochosa. A transição do vale para as montanhas, ficando nítida, à medida que subíamos a serra.
O monte Nemrud é um dos picos mais altos, se não o mais alto. Foi na cratera de um vulcão extinto que o rei Antiochus I resolveu erigir o seu túmulo. E seu túmulo tinha que ser grandioso, afinal, clamava ser descendente de Alexandre, o Grande. Filho de um soldado macedônio, da família de Alexandre e uma princesa persa, cultuava os deuses gregos e persas, ao mesmo tempo e esta dualidade está preservada no seu túmulo-templo. Aparentemente, construíram os templos, antes da morte do rei, quando morreu, foi sepultado no meio da montanha e depois foi erigido o pico, com pedras soltas.
O pico tinha 75m de altura, mas o pesquisador alemão, Karl Sester, em 1881, inspirado na descoberta da riquíssima tumba do rei Tut Ank Amun, no Egito, achava que ia descobrir tesouros, na tumba de Antiochus, dinamitou a montanha, que perdeu 25 metros de altitude, esparramando as pedras pelo local. Nada encontrou. Só fez sua cota de estrago. Devia ter ficado no seu ofício de engenheiro, construindo estradas, que seria mais proveitoso para a humanidade.
Face "nascer-do-sol", com vista para o trailer do guarda (sujeito sinistro!).

O túmulo é disposto em duas faces da montanha. Uma face dá para o leste, a face "nascer do sol" (Gün eş) e a face oeste, que dá para o por-do-sol. Então, a visitação é feita da seguinte maneira: você vai ver o por do sol, em um dia, no outro você vê o amanhecer e entende o espírito do culto ao sol, que se revela na disposição do túmulo. As figuras e efígies são dos mesmos deuses, o que varia é a roupa e o adorno da cabeça. O panteão é de deuses que se correspondem, tanto no culto grego, quanto no persa. Só vendo uma reconstrução de um dos templos, para entender. Os dois templos são idênticos. As figuras dos colossos assentados permanecem, mas as cabeças foram derrubadas, de propósito e quebradas, pelos cristãos e seu fanatismo iconoclasta. O Tempo é um grande escultor.
Reconstrução do templo e dos colossos.

Também os terremotos que assolam este país tectônico, nada ajudaram na preservação deste monumento, porém continua chamando a atenção de milhares de turistas. Nós pensávamos que não íamos encontrar muitos, mas no por do sol estava cheio e a maior dificuldade foi tirar fotos sem gente ou pelo menos um sinal, como sacolinhas ou garrafas de água. Imaginamos que, pelo menos no nascer do sol ia ter menos gente. Que nada! Parecia que a Turquia inteira estava lá, mais os russos, italianos, franceses, alemães, ingleses, brasileiros (sim, tinha mais!!!), ibéricos, escandinavos, enfim, gente do mundo inteirinho.
Da esquerda para a direita, os deuses são: o leão e a águia, adorados pelos persas, Apolo (Mithras),  AfroditeTyché (Bakht), Zeus (Ahura Mazda), o próprio rei Antiochus, Héracles (Vahagn) e novamente a águia e o leão. Parece que na Antiguidade, as imagens dos reis eram perpetuadas, ao lado das estátuas dos deuses, talvez para dar proteção, poder, para impressionar os súditos ou porque se achavam semideuses, mesmo. Não se sabe ao certo, mas é muito comum ver soberanos, fidalgos e deuses, em uma sequência de estátuas.
Cabeça de Apolo, com seus raios na cabeça, e a águia.
A paisagem que do monte Nemrud se avista, é simplesmente bela, apesar de pedregosa, árida e longínqua.
O horizonte é deslumbrante e é um dos lugares lindos, que valem a pena ser visitados, neste país tão cheio de encantos. Vale o tempo de viagem e o sacrifício às intempéries.
O  Motel Güneş, onde ficamos, fica na base do monte e do lado do amanhecer. Seu gerente, Hussein, muito simpático, estava com gripe (sim, eu peguei!), mas nos atendeu da melhor maneira. O hotel é do governo e estão construindo um bem maior, ao lado. Hussein, depois da janta, em uma mesa bem comprida, com três pessoas em cada ponta, nos ofereceu um chá (çay) em seu quarto, o mais quente do hotel, pois tinha um aquecedor de ferro, onde ele já esquentava a água do samovar. E com a TV e o computador ligados, conversou conosco um tempão, contando sua história tão diferente. É curdo e mora na vila, a 40km da montanha. Aprendeu a falar inglês, alemão e algumas noções de francês, sozinho. Percebeu, que se não se habilitasse nas línguas, ia ficar lavando pratos para o resto da vida. Contou que seu pai queria ser professor, mas teve uma juventude muito difícil. Aprendeu turco otomano, na escola, e na hora em que ia se formar, Atatürk mudou o alfabeto. O turco era escrito da direita para a esquerda em alfabeto árabe, por causa do Qu'ran, mas com a secularização da língua, passou a ser escrito da esquerda para a direita e com o alfabeto latino!!! Teve de aprender a ler, de novo e isso levou o tempo necessário para que perdesse a oportunidade de estudar mais e ser professor, como queria.
Rei Antiochus I
Também nos contou, que o clima da região é muito extremo, que no verão as temperaturas chegam de 45 a 50ºC e no inverno, há nevascas violentas que chegam a três metros de altura de neve. O hotel ia fechar, de novembro a abril e nós éramos os últimos turistas da temporada.
Isto foi o suficiente para o Gerson se lembrar do filme, "O Iluminado".
Fomos dormir, pela segunda vez, em quartos separados, não gostando nada desta ideia. Preferia ter o Gé ao meu lado, durante aquela noite cheia de eventos nervosos e meio paranormais, como batidas nas paredes, sopros de vento quente, com um frio de todos os diabos e as janelas hermeticamente fechada, bem como sensação de sopros gelados.
Bem, o Les encontra suas explicações, para justificar sua valentia, mas nós, que gostamos de sentir o ambiente que nos vai à volta, não explicamos nada e passamos todos os medos que temos direito...
No dia seguinte, Hussein nos acordou às 5h e fomos então ver o sol nascer em Nemrud. Não passaríamos medos, afinal estava cheio de gente, lá em cima. Fazia muito e muito frio e usamos todos os aparatos de frio que trouxemos, pelo menos esta vez.
Primeiros raios de sol
Até os turcos estavam embrulhados em cobertores, emprestados dos hotéis. Imaginem o frio que estávamos passando!!!
A nota bizarra, foi um italiano de bermuda e camiseta, bancando o valentão, mas sem arrepiar.
O amanhecer
Os horizontes são indescritíveis, sem uma foto para ilustrar. Avistar, ao longe, o rio Eufrates, sendo barrado pela represa de Atatürk (sempre ele!), é muito emocionante. E lindo! Nesta última foto, pode ser visto bem o fundo, o belo rio Firat (Eufrates), com sua represa.
Infelizmente, a beleza deste lugar, não cabe nas fotos. Mas já dá para se ter uma ideia da emoção que sentimos.
Nemrud é um sítio com as limitações do frio e só pode ser visitado na época das temperaturas mais quentes, desde a primavera até o outono. Nos meses frios, fica inóspito demais. Enquanto tirava as últimas fotos de Nemrud, o guarda sinistro passou por perto e avisou (na sua língua) que a van já estava me esperando. Eu, aproveitando da ausência total dos turistas que tinham ido embora e da minha dificuldade de locomoção, para ficar mais um pouquinho, tirei mais umas fotos da minha prórpia sombra se projetando nas estátuas e me despedi dos colossos, talvez para sempre, pois o Les falou que não volta mais, para ver um monumento à vaidade humana.
Mas, se não fosse a vaidade humana, não haveria monumentos...
Gün eş.

Turcos, de cobertor, em suas viagens de Bayran e o rio Firat, ao nascer do sol.

O vaidoso, Antiochus I

domingo, 13 de abril de 2014

Arslantepe - uma viagem no tempo

Portal de Arslantepe
Há lugares que impressionam, na hora. Quando você vê, pela primeira vez um monumento, uma cidade em ruínas, uma peça de museu jamais imaginada, uma paisagem inusitada e você se impressiona. Mas há lugares que impressionam mais tarde. Que você olha e fica pensando por muito tempo, ruminando as ideias, revendo mentalmente tudo que marcou alí.
Assim foi, com Arslantepe, um subúrbio a uma meia hora de Malatya. Para lá chegar, tomamos um ônibus velhusco, fomos observando a paisagem quase nua, apenas plantações de damasco, já sem folhas. Faz mais frio, na região.
Chegamos a uma cidadezinha linda, toda em estilo otomano, com casinhas pintadinhas de novo, uma mini-mesquita, super mimosa, cantando o ezan do meio dia. Uma rua comprida, que terminava em uma escola e era hora do recreio.
Como estávamos em uma região muito próxima à Síria, passaram três aviões de guerra, patrulhando. Só para dar um friozinho na espinha, de emoção, pois onde pousava nosso olhar, só havia paz.
                                ***
Passando perto da escolinha, fui chamada por uma menina e parei para conversar com ela. Era linda, uns 8 anos, dentinhos cariados. Junto com ela, mais algumas meninas, uns dois ou três meninos. A simpatia foi imediata, mas o inglês, nesta hora, pensei, não ia adiantar muito... Engano meu. Qual não foi minha surpresa a menina falou um estridente"good morning"! e em seguida, todas as expressões de diálogo de que ela pode se lembrar. Pedindo e dando as respostas."What's your name, where are you from, how old are you (risos), good night, good afternoon, how do you do, hi, hello, excuse me, what time is it, sit down, e por fim, um sonoro I love you (muitas gargalhadas)!!!"
Este diálogo maluco só fez as outras crianças participarem e darem sua demonstração de que aprendiam inglês na escola, de que eram desembaraçadas e muito simpáticas.
Emira (a menina do meio), I love you too.

A sessão de fotos terminou quando Gerson e Les chegaram à altura da escola, pois eu havia disparado antes. Despedi-me da criançada com muitos beijos de amor eterno e fomos continuando a caminhada aos gritos de, "I love you", e eu respondendo, "Forever".
 No final da rua, havia uma belíssima horta, com repolhos gigantescos, à direita e à esquerda um magnífico portal, que nos conduziria a Arslantepe.
E o que é Arslantepe? Um tell, um tepe = colina. Mas não é uma colina comum. Na verdade, uma colina feita de cidades superpostas, que vai subindo, com as eras de entulho acumulado, uns sobre os outros. Principalmente construídas de pedras misturadas a tijolos de lama crua, como adobes, mas de um sedimento fino e friável, pouco consolidado, que vai se desgastando, com as intempéries e desmoronando, e outra edificação é construída em cima da primeira. Desde o período Calcolítico inferior (4250-3900 AC, anterior à civilização de Ur), até o período romano-bizantino (até VI DC), Arslantepe tem 12 camadas.
As escavações de Arslantepe estão sendo feitas desde 1961, quando professores da universidade da Italia procuravam pelas civilizações neo-hititas, pois parece que na região de Malatya, a cidade de Malidiya, foi a capital onde o império hitita teve fim. Encontraram esta colina de topo achatado, no meio do nada e colinas com esse formato, no mundo antigo, são cidades sobrepostas soterradas.
Nos primeiros estratos, foram encontrados igrejas sarcófagos e tumbas bizantinas, e na continuação das escavações foram encontrando civilizações em camada, como se fossem as páginas do livro de história da humanidade.
Uma casa, em uma rua muito estreita. Devia ser um local de destaque.
O nome da colina deve-se à Porta dos Leões, da cidade hitita encontrada no meio do entulho de argila. Colina dos Leões (Arslan = leão). No estrato hitita, encontraram moldes de metalurgia, machados, espadas de bronze, também os primeiros registros de ferro, o metal por que os hititas se caracterizavam. Espadas enferrujadas que ao mirá-las você percebe que tirou muitas vidas. Espadas dos guerreiros desta civilização belicosa, que perseguiam os egípcios, que tinham carros puxados a cavalo, que construíram imensas cidades fortificadas e foram muito poderosos. Sim, porque todos os hititas eram guerreiros, mesmo os lavradores, pastores e artífices. Que bela arte faziam, sabiam escrever letras cuneiformes e antes disso alguns hieróglifos típicos. Escultores hábeis, arquitetos, engenheiros, eram também religiosos, cultuavam cerca de 8 mil deuses.
Mas continuaram escavando, até chegar no último estrato, do período Calcolítico e Neolítico Superior, ou seja, quando homem começava a fazer uso da cerâmica, mas ainda usava muitos objetos de pedra polida. Logo entrando na idade do Cobre, que é onde começam a aparecer os primeiros aglomerados humanos estáveis, devido à lavoura, à domesticação dos animais. É a idade da cidade mais antiga das escavações de Arslantepe. Um pouco anterior à civilização Uruk, de Ur.
Rua estreita de umas das primeiras cidades do mundo.

Nesta cidade encontraram vasilhas e panelas de barro, ânforas de água bem grandes (não tão grandes como os enormes vasos dos hititas), incensórios, filtros e funis. Talvez já houvesse a roda, mas não carros puxados por animais, pois para isso seria necessário haver estradas, e as ruas de Arslantepe são muito estreitas.
Virando à esquerda em uma esquina. um grande templo se apresenta, com muitas pedras de sacrifício e possivelmente um trono para o rei ou sacerdote.
Ao lado das ruínas do tepe, há uma réplica de duas casinhas, de como deveriam ser por dentro, a partir dos indícios encontrados. Posso dizer que qualquer família de hoje poderia viver numa casinha como aquelas, acanhadas, decerto, despojadas de todos os nossos confortos, mas quente e aconchegante, coberta de espessa palha,  e começava a chover.
Nosso guia era lindo e nos deu um folheto e um dvd, com um mini-documentário das escavações de Arslantepe, em homenagem a um membro falecido da equipe, o homem que juntava os caquinhos das cerâmicas, um por um, até montar uma vasilha, um pote de água ou de azeite, um incensório, como se fosse um imenso quebra-cabeças.
Arslantepe ficou gravada em minha mente. Volta e meia passeio por lá, em meus devaneios.
Objetos hititas encontrados em Arslantepe - Museu de Amasya
Tumba bizantina no útimo estrato do tepe.
Depois de passarmos pelo templo e subirmos até a era Bizantina, no topo da colina, nos despedimos do guia e voltamos a ver a horta, a escolinha, a longa rua que nos levaria de volta a Malatya.
As ruínas são protegidas contra as intempéries para que não desmoronem ainda mais



quarta-feira, 9 de abril de 2014

Malatya

Depois de uma longa viagem de trem, chegamos a Malatya, a terra do damasco. Como falei anteriormente, na Turquia, a região que produz muito uma coisa, este produto é exaltado em uma estátua, kitsch no último, na entrada da cidade mais produtiva, em um ponto bem visível. Admirem-se portanto com o damasco enorme de Malatya, que ficava bem pertinho do hotel Kirçuval, onde ficamos. E acrescento que o Kirçuval foi um dos melhores hotéis. Acomodações espetaculares, tratamento muito bom, café da manhã, com uma tremenda fartura, porém fica em um local extremamente barulhento. Talvez por isso não ganhe mais estrelinhas. Mas a canseira sempre ajuda nesta hora...
É que a cidade nos oferecia Arslantepe, um subúrbio interessantíssimo e, no dia seguinte, o ponto mais alto de nossa viagem, a montanha de Nemrud.
As pessoas de Malatya são amigáveis, todos tratam muito bem a todos, não é especial para o turista, porque não é o forte da região. Fizemos muitos amigos. Também, comendo damasco e numa paisagem daquelas, não é de se admirar que todos sejam gentis...
Uma nota especial para uma loja de produtos feitos com damasco. Damascos secos ao sol, na máquina, sementes de damasco torradas, com sal, sem sal, cumaredine enrolado com pistache, com amêndoas, com sementes de damasco, óleo de semente de damasco, doces com cara de quebra queixo, com chocolate, era tanta coisa na lojinha! Todo mundo muito simpático. Loja tocada pela família, todos irmãos. Fiz amizade com todos a ponto de apresentarem a mãe. Em duas idas à loja, fiquei amiga da família inteira.
Uma das muitas famílias dedicadas em aproveitar o damasco de todas as maneiras. Com as cascas duras da semente, fazem bloquetes de calçamento. O que sobra do damasco? Absolutamente nada. Como secam as frutas e exportam, não há desperdício.
Esta é uma lição que devemos aprender.
Terra de muita fartura, Malatya nos pegou desprevenidos, com tantas guloseimas feitas com damasco. Ah!!!!